A viagem de Chihiro é para mim um filme
iconográfico que, desde o primeiro instante, me atingiu com a intensidade dos
filmes que nos acompanham o resto dos nossos dias e que revemos incessantemente.
Revemos porque nos abandonamos por instantes numa entrega plena em tudo idêntica
à mais profunda e reparadora meditação.
Para mim é um filme de outono, que gosto de
rever com as primeiras chuvas e as primeiras chávenas de chá.
Como todos os filmes de animação do
mestre Miyazaki, a viagem de Chihiro é
composta por uma mensagem imediata, dirigida principalmente às crianças, e uma
mensagem mais profunda e simbólica que nem sempre encontra consenso na sua interpretação. O
mestre faz questão de não ser muito explícito nas entrevistas o que vai permitindo as diferentes correntes de interpretação fluírem
ao sabor da imaginação ou da identificação de
cada um.
A interpretação que
se segue assenta numa visão que, no meu entender é a
mais correta e a única com a qual me identifico.
O filme baseia-se nas aventuras de uma menina
numa vila habitada por espíritos e na sua tentativa de resgatar os pais que
foram transformados em porcos por uma velha maquiavélica chamada Yubaba. Mas,
debaixo da aparência inocente de uma história infantil, reside uma história bem
mais complexa: a da conquista do nosso Eu.
A cidade fantasma à qual chega Chihiro, representa
a vida tal como a vivemos no nosso dia-a-dia. A velha Yubaba representa o nosso
Ego, uma vez que ela vive no topo de uma casa de banhos que, por sua vez,
representa o corpo e a mente. Yubaba está continuamente a satisfazer os
caprichos de um bebé gigante que ela mantém longe do mundo exterior num quarto
cheio de brinquedos. Este bebé representa as nossas emoções.
A Yubaba tem por companhia um pássaro mal-intencionado
e no seu quarto, existem três cabeças idênticas que saltam, continuamente, de
um sítio para o outro. Miyazaki encontrou uma forma interessante de representar
os três níveis que encontramos nas nossas mentes: o reptiliano, o mamífero e o
humano, respetivamente representados pelo pássaro, o bebé e a Yubaba. Por
outras palavras, o nosso instinto de sobrevivência, as nossas reações emocionais
e a nossa inteligência.
Miyazaki representa toda a nossa existência com
a vila fantasma que, durante o dia-a-dia, se caracteriza por um frenesim de atividades.
À noite, quando todos dormem, Yubaba (ego) voa para longe da casa dos banhos (o
corpo e a mente) porque, durante o sono o nosso ego abandona-nos
temporariamente.
A casa dos banhos é a residência de uma
multidão de empregados que servem os
deuses-espíritos que chegam por barco todas as noites. Logicamente, estes
empregados representam a multitude de pensamentos e atividade mental que nos
assola durante o dia e o seu esforço para satisfazer os deuses-espíritos que são os estímulos
captados pelos nossos sentidos. A maior parte destes empregados são
sapos, que, pelas suas características
anfíbias, são a escolha ideal para simbolizar a transição entre os nossos pensamentos (água) e a sua materialização
mediante a ação
(terra).
Entre os empregados da casa dos banhos há
três que irão ajudar Chihiro na sua aventura: O jovem
Haku, o velho Kamaji e a empregada Lin. Todos os três representam um aspecto
fundamental para a nossa conquista espiritual. Haku é um jovem com poderes,
respeitado por todos os que vivem na casa dos banhos, no entanto ele não está
em paz porque a Yubaba lhe roubou a identidade. Ele representa o potencial de
transformação que reside no interior de cada um de nós. Na
verdade ele tem a capacidade de se transformar num magnífico dragão
branco. Entre Haku e Chihiro desenvolve-se uma amizade profunda, um amor puro
entre a ânsia espiritual, representada por ela, e a capacidade de transformação que
ele encerra em si, a união que torna possível conseguirmos transcender a realidade ficcional
do mundo que nos rodeia
Haku aconselha Chihiro a visitar Kamaji na
casa das caldeiras, no piso mais térreo da casa dos banhos, onde este trabalha na
preparação águas aromáticos. O velho Kamaji representa
o corpo a trabalhar arduamente para satisfazer todos os requisitos. Até as
células são representadas por pequeninas bolas de
fuligem que carregam carvão para a caldeira.
Kamaji diz a Chihiro para ir até ao topo
falar com Yubaba dado ser ela quem decide se ela poderá, ou não,
ficar. Para ascender ao topo Chihiro vai de elevador, na companhia da empregada
Lin que, apesar de refilar continuamente, está sempre pronta a trabalhar e a
ajudar quando necessário. Esta jovem representa a nossa capacidade de sacrifício
e de esforço.
A Yubaba aceita, ainda que relutante, contratar
a menina roubando-lhe o nome e convencendo-se que o trabalho duro levará
Chihiro a esquecer-se da sua identidade o que a tornará escrava. É interessante
como Miyazaki simboliza o poder do ego sobre a mente e o corpo, através da
posse do nome ilustrando que o poder do ego é meramente conceptual,
intelectual.
Após ter conseguido que Yubaba lhe desse
trabalho, Chihiro vê-se a braços com a sua primeira missão; a
preparação de
um banho para um deus fedorento. É
tempo de, espiritualmente falando, arregaçar as
mangas e começar a limpar as nossas mentes e os nos nossos maus hábitos. Com o
esforço de todos, incluindo de Yubaba, eles conseguem limpar a imensa sujidade
agregada ao deus e transforma-lo num limpo, leve e brilhante deus de um rio. O
deus agradecido compensa Chihiro entregando-lhe uma bola mágica que ela pensa
usar nos pais transformados em porcos. Este episódio representa o primeiro e
mais difícil trabalho espiritual: o de limpar a nossa mente e corrigir os
nossos hábitos.
O segundo deus-espírito com o qual Chihiro
terá de lidar não é tão
terrível
quanto o deus fedorento, na verdade é ela quem
o convida a entrar na casa dos banhos. Este espírito é uma sombra negra, alta e
esguia que no lugar do rosto (sem cara) apresenta uma máscara branca que lembra
um pouco uma máscara noh e que tem a habilidade de gerar pepitas de ouro. Este
facto chama a atenção dos empregados da casa de banhos que
rapidamente se colocam ao dispor de todos os seus caprichos em troca de ouro.
Mas o espírito, à medida que devora comida de forma descontrolada vai ficando
cada vez maior e mais grotesco ao ponto de engolir dois dos empregados. A
situação descontrola-se colocando em risco a própria casa de banhos. No entanto, Chihiro não se
deixa tentar pelo ouro, na verdade ela sente pena do espírito e acaba por lhe
dar a engolir metade da bola mágica que o deus do rio (antes espírito
fedorento) lhe deu. O espírito sem cara inicia a sua purificação
vomitando tudo o que ingeriu até se transformar de novo na sombra que agora
passa a seguir a menina de forma submissa. Este episódio representa o autocontrolo
face aos nossos impulsos e apetites e o poder de limparmos as nossas mentes.
O jovem Haiku desejoso de conquistar a sua liberdade
e a de Chihiro, rouba um talismã de um outro personagem chave da historia: a
irmã gémea de Yubaba que, apesar de fisicamente idêntica
vive com base em princípios diametralmente opostos. A irmã de
Yubaba, de seu nome Zeniba, representa o outro lado do nosso ego, o resultado
da transformação da inteligência
em sabedoria. Zeniba, guiada por Chihiro, vai secretamente aos aposentos de
Yubaba transformando o bebé gigante num rato e o pássaro mal-intencionado numa
mosca. O efeito da sabedoria quando entra na nossa mente, é isso mesmo,
terminar com as nossas emoções infantis e atitudes negativas até estas se tornarem aspectos inofensivos e
irrelevantes da nossa personalidade.
Haiku, transformado num dragão, fica
seriamente ferido durante o roubo do talismã.
Chihiro dá-lhe a outra metade da bola mágica de modo a curar-lhe as feridas e
decide devolver o talismã a Zeniba. Para tal ela tem que encetar uma
longa viagem de comboio sobre as águas que envolvem a cidade fantasma, na
companhia do rato, da mosca e do espírito negro (sem face). Finalmente chegam
ao destino parando numa solitária estação onde os aguarda um candeeiro que, aos
pulos, que os conduz até à casa de Zeniba. Esta vive numa casa simples mas
acolhedora situada no meio da floresta. Zeniba recebe-os com hospitalidade e
convida o espirito sem face a ficar com ela para sempre. Este episódio
representa o longo e solitário processo até ao encontro final com a luz quente
e confortável da sabedoria que põe termo aos nossos apetites sensoriais.
Haiku surge à porta de Zeniba, transformado
num magnífico dragão, no qual Chihiro, o rato e a mosca
regressam à casa dos banhos. Enquanto voam pelos céus noturnos, Chihiro
reconhece a verdadeira identidade de Haiku como sendo o espirito de um rio no
qual quase se afogou quando era pequena. Quando ela pronuncia o seu nome, Haiku
recorda que esse é o seu verdadeiro nome e deste como consegue quebrar a praga
que o subjugava face a Yubaba. Quando temos o total controlo das nossas emoções e
os nossos desejos são governados pela sabedoria, conseguimos
reconhecer a nossa verdadeira natureza divina.
A aventura está quase a terminar mas Yubaba
ainda tem um último teste na manga. Ela pede a Chihiro que identifique os seus
pais no meio de um grupo de porcos. Chihiro responde que nenhum deles são os
seus pais. A menina tem razão dado que na verdade, todos os animais são
empregados transformados em porcos que, face à resposta de Chihiro voltam ao
seu estado original. Nesse instante a nossa busca espiritual chega ao seu
destino dado que nunca mais poderemos ser enganados pelo nosso ego ou
pensamentos. Somos livres!
Chihiro retorna à entrada da vila, onde a sua
aventura começo, e onde se encontram os pais à sua espera inconscientes de tudo
o que aconteceu à filha. A pessoa parece ser a mesma mas interiormente a sua
transformação é tão
profunda e irreversível, que as suas ações futuras serão
sempre guiadas pela sabedoria.