12/09/2015

A viagem de Chihiro, uma interpretação.



A viagem de Chihiro é para mim um filme iconográfico que, desde o primeiro instante, me atingiu com a intensidade dos filmes que nos acompanham o resto dos nossos dias e que revemos incessantemente. Revemos porque nos abandonamos por instantes numa entrega plena em tudo idêntica à mais profunda e reparadora meditação.
Para mim é um filme de outono, que gosto de rever com as primeiras chuvas e as primeiras chávenas de chá.
Como todos os filmes de animação do mestre Miyazaki, a viagem de Chihiro é composta por uma mensagem imediata, dirigida principalmente às crianças, e uma mensagem mais profunda e simbólica que nem sempre encontra consenso na sua interpretação. O mestre faz questão de não ser muito explícito nas entrevistas o que vai permitindo as diferentes correntes de interpretação fluírem ao sabor da imaginação ou da identificação de cada um.
A interpretação que se segue assenta numa visão que, no meu entender é a mais correta e a única com a qual me identifico. 

O filme baseia-se nas aventuras de uma menina numa vila habitada por espíritos e na sua tentativa de resgatar os pais que foram transformados em porcos por uma velha maquiavélica chamada Yubaba. Mas, debaixo da aparência inocente de uma história infantil, reside uma história bem mais complexa: a da conquista do nosso Eu.
A cidade fantasma à qual chega Chihiro, representa a vida tal como a vivemos no nosso dia-a-dia. A velha Yubaba representa o nosso Ego, uma vez que ela vive no topo de uma casa de banhos que, por sua vez, representa o corpo e a mente. Yubaba está continuamente a satisfazer os caprichos de um bebé gigante que ela mantém longe do mundo exterior num quarto cheio de brinquedos. Este bebé representa as nossas emoções.
A Yubaba tem por companhia um pássaro mal-intencionado e no seu quarto, existem três cabeças idênticas que saltam, continuamente, de um sítio para o outro. Miyazaki encontrou uma forma interessante de representar os três níveis que encontramos nas nossas mentes: o reptiliano, o mamífero e o humano, respetivamente representados pelo pássaro, o bebé e a Yubaba. Por outras palavras, o nosso instinto de sobrevivência, as nossas reações emocionais e a nossa inteligência.
Miyazaki representa toda a nossa existência com a vila fantasma que, durante o dia-a-dia, se caracteriza por um frenesim de atividades. À noite, quando todos dormem, Yubaba (ego) voa para longe da casa dos banhos (o corpo e a mente) porque, durante o sono o nosso ego abandona-nos temporariamente.

A casa dos banhos é a residência de uma multidão de empregados que servem os deuses-espíritos que chegam por barco todas as noites. Logicamente, estes empregados representam a multitude de pensamentos e atividade mental que nos assola durante o dia e o seu esforço para satisfazer os deuses-espíritos que são os estímulos captados pelos nossos sentidos. A maior parte destes empregados são sapos, que, pelas suas características anfíbias, são a escolha ideal para simbolizar a transição entre os nossos pensamentos (água) e a sua materialização mediante a ação (terra).
Entre os empregados da casa dos banhos há três que irão ajudar Chihiro na sua aventura: O jovem Haku, o velho Kamaji e a empregada Lin. Todos os três representam um aspecto fundamental para a nossa conquista espiritual. Haku é um jovem com poderes, respeitado por todos os que vivem na casa dos banhos, no entanto ele não está em paz porque a Yubaba lhe roubou a identidade. Ele representa o potencial de transformação que reside no interior de cada um de nós. Na verdade ele tem a capacidade de se transformar num magnífico dragão branco. Entre Haku e Chihiro desenvolve-se uma amizade profunda, um amor puro entre a ânsia espiritual, representada por ela, e a capacidade de transformação que ele encerra em si, a união que torna possível conseguirmos transcender a realidade ficcional do mundo que nos rodeia
Haku aconselha Chihiro a visitar Kamaji na casa das caldeiras, no piso mais térreo da casa dos banhos, onde este trabalha na preparação águas aromáticos. O velho Kamaji representa o corpo a trabalhar arduamente para satisfazer todos os requisitos. Até as células são representadas por pequeninas bolas de fuligem que carregam carvão para a caldeira. 
Kamaji diz a Chihiro para ir até ao topo falar com Yubaba dado ser ela quem decide se ela poderá, ou não, ficar. Para ascender ao topo Chihiro vai de elevador, na companhia da empregada Lin que, apesar de refilar continuamente, está sempre pronta a trabalhar e a ajudar quando necessário. Esta jovem representa a nossa capacidade de sacrifício e de esforço.
A Yubaba aceita, ainda que relutante, contratar a menina roubando-lhe o nome e convencendo-se que o trabalho duro levará Chihiro a esquecer-se da sua identidade o que a tornará escrava. É interessante como Miyazaki simboliza o poder do ego sobre a mente e o corpo, através da posse do nome ilustrando que o poder do ego é meramente conceptual, intelectual.


Após ter conseguido que Yubaba lhe desse trabalho, Chihiro vê-se a braços com a sua primeira missão; a preparação de um banho para um deus fedorento. É tempo de, espiritualmente falando, arregaçar as mangas e começar a limpar as nossas mentes e os nos nossos maus hábitos. Com o esforço de todos, incluindo de Yubaba, eles conseguem limpar a imensa sujidade agregada ao deus e transforma-lo num limpo, leve e brilhante deus de um rio. O deus agradecido compensa Chihiro entregando-lhe uma bola mágica que ela pensa usar nos pais transformados em porcos. Este episódio representa o primeiro e mais difícil trabalho espiritual: o de limpar a nossa mente e corrigir os nossos hábitos.


O segundo deus-espírito com o qual Chihiro terá de lidar não é tão terrível quanto o deus fedorento, na verdade é ela quem o convida a entrar na casa dos banhos. Este espírito é uma sombra negra, alta e esguia que no lugar do rosto (sem cara) apresenta uma máscara branca que lembra um pouco uma máscara noh e que tem a habilidade de gerar pepitas de ouro. Este facto chama a atenção dos empregados da casa de banhos que rapidamente se colocam ao dispor de todos os seus caprichos em troca de ouro. Mas o espírito, à medida que devora comida de forma descontrolada vai ficando cada vez maior e mais grotesco ao ponto de engolir dois dos empregados. A situação descontrola-se colocando em risco a própria casa de banhos. No entanto, Chihiro não se deixa tentar pelo ouro, na verdade ela sente pena do espírito e acaba por lhe dar a engolir metade da bola mágica que o deus do rio (antes espírito fedorento) lhe deu. O espírito sem cara inicia a sua purificação vomitando tudo o que ingeriu até se transformar de novo na sombra que agora passa a seguir a menina de forma submissa. Este episódio representa o autocontrolo face aos nossos impulsos e apetites e o poder de limparmos as nossas mentes.


O jovem Haiku desejoso de conquistar a sua liberdade e a de Chihiro, rouba um talismã de um outro personagem chave da historia: a irmã gémea de Yubaba que, apesar de fisicamente idêntica vive com base em princípios diametralmente opostos. A irmã de Yubaba, de seu nome Zeniba, representa o outro lado do nosso ego, o resultado da transformação da inteligência em sabedoria. Zeniba, guiada por Chihiro, vai secretamente aos aposentos de Yubaba transformando o bebé gigante num rato e o pássaro mal-intencionado numa mosca. O efeito da sabedoria quando entra na nossa mente, é isso mesmo, terminar com as nossas emoções infantis e atitudes negativas até estas se tornarem aspectos inofensivos e irrelevantes da nossa personalidade.





Haiku, transformado num dragão, fica seriamente ferido durante o roubo do talismã. Chihiro dá-lhe a outra metade da bola mágica de modo a curar-lhe as feridas e decide devolver o talismã a Zeniba. Para tal ela tem que encetar uma longa viagem de comboio sobre as águas que envolvem a cidade fantasma, na companhia do rato, da mosca e do espírito negro (sem face). Finalmente chegam ao destino parando numa solitária estação onde os aguarda um candeeiro que, aos pulos, que os conduz até à casa de Zeniba. Esta vive numa casa simples mas acolhedora situada no meio da floresta. Zeniba recebe-os com hospitalidade e convida o espirito sem face a ficar com ela para sempre. Este episódio representa o longo e solitário processo até ao encontro final com a luz quente e confortável da sabedoria que põe termo aos nossos apetites sensoriais.


Haiku surge à porta de Zeniba, transformado num magnífico dragão, no qual Chihiro, o rato e a mosca regressam à casa dos banhos. Enquanto voam pelos céus noturnos, Chihiro reconhece a verdadeira identidade de Haiku como sendo o espirito de um rio no qual quase se afogou quando era pequena. Quando ela pronuncia o seu nome, Haiku recorda que esse é o seu verdadeiro nome e deste como consegue quebrar a praga que o subjugava face a Yubaba. Quando temos o total controlo das nossas emoções e os nossos desejos são governados pela sabedoria, conseguimos reconhecer a nossa verdadeira natureza divina.
A aventura está quase a terminar mas Yubaba ainda tem um último teste na manga. Ela pede a Chihiro que identifique os seus pais no meio de um grupo de porcos. Chihiro responde que nenhum deles são os seus pais. A menina tem razão dado que na verdade, todos os animais são empregados transformados em porcos que, face à resposta de Chihiro voltam ao seu estado original. Nesse instante a nossa busca espiritual chega ao seu destino dado que nunca mais poderemos ser enganados pelo nosso ego ou pensamentos. Somos livres!
Chihiro retorna à entrada da vila, onde a sua aventura começo, e onde se encontram os pais à sua espera inconscientes de tudo o que aconteceu à filha. A pessoa parece ser a mesma mas interiormente a sua transformação é tão profunda e irreversível, que as suas ações futuras serão sempre guiadas pela sabedoria.

1 comentário:

Unknown disse...

♥️♥️♥️